Por José Pedro Pereira
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25 mai., 2020
“Não tenho tempo”, uma das expressões mais famosas universalmente. Tecnicamente, é uma expressão que estará sempre correta, independentemente do contexto. A partir do momento em que dizemos tê-lo, já não é tempo que temos. O próprio termo “tempo” já é contra a sua natureza. No entanto, somos escravos dele, por mais absurdo que isso soe. A ideia abstrata de “tempo”, segundo a teoria do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941) é indissociável da noção de movimento. Apesar de esta noção se situar mais centrada num plano físico do que metafísico, Bergson procura estabelecer um equilíbro entre ambos, sublinhando o modo como o movimento se interseta com os conceitos de mudança, evolução e fluidez. Bergson vê o movimento como a força vital da existência, tal como já Aristóteles o fizera, ao criar o conceito de “entelequia”. No entanto, a visão aristotélica é binária, consistindo a entelequia numa oposição à “stasis”, sendo que a primeira corresponde à realidade perfeita de algo enquanto a segunda a corrompe. Em “Introduction à la métaphysique”, contudo, Bergson demonstra uma atitude contrária, afirmando que a “stasis” é apenas um espaço efémero entre mobilidades. Para Bergson, o tempo é algo que não pode ser quantificado, visto que este pressupõe, na sua essência, uma não-duração. O tempo é o movimento perpétuo; a mudança e a evolução; a diferença; um fluxo indiferenciado e eterno que apenas pode ser apreendido por métodos que irão subverter a sua própria essência não-estanque. Bergson defende um mundo em perpétua transição, um mundo de devires infinitos onde o tempo deve ser visto como uma entidade não-divisível, nunca podendo ser tratado da mesma forma que o espaço. Vemos, pois, como o movimento e a mudança são cruciais para a noção bergsoniana de tempo. No entanto, quando aplicada aos seres naturais, a noção de tempo cria sempre mudança e movimento, mas nem sempre depende do movimento voluntário do sujeito, pois mesmo parados vivemos num “perpetuum mobile”. Sirvo-me agora da literatura, mais especificamente do multifacetado escritor irlandês Samuel Beckett (1906-1989), para exemplificar este conceito. A sua obra está recheada de exemplos que demonstram como a mudança e movimento não implicam deslocação, dado o leque de personagens que se encontram estáticos ao longo de toda a sua existência: Hamm, em “Endgame”, embora estático na sua cadeira de rodas, é movimentado por Clov e, apesar de não ter qualquer tipo de controlo motor sobre si próprio, é ele quem controla todas as outras personagens da peça; Murphy, em “Murphy”, senta-se numa cadeira de baloiço, completamente atado a ela, estando então simultaneamente estático e em movimento; Winnie, em “Happy Days”, apesar de enterrada até à cintura durante todo o primeiro ato, e até ao pescoço durante o segundo, encontra-se num constante devaneio insano ao longo de toda a peça e consegue movimentar-se através do discurso, ainda que imobilizada, estática; do mesmo modo, Malone, em “Malone Dies”, estático numa cama, à espera de morrer, consegue todavia movimentar-se através das suas ficções, permanece em movimento através da linguagem, continua vivo. Da filosofia à escrita, acabamos com o tão atual Covid-19, este monstro que nos assombra atualmente e faz com que esta noção de movimento estático seja muito relevante. Vejámos: num período de confinamento em que a grande parte da população se manteve em suas casas, o mundo continuou a movimentar-se. Graças às múltiplas plataformas virtuais, conseguimos navegar sem sair de casa. Quase tudo está disponível à distância de um “click”. No entanto, como em tudo, existem sempre os dois lados da moeda. Para vários profissionais, a utopia virtual rapidamente se transformou em distopia com o conceito de “Teletrabalho”. Neste momento, há sempre tempo para estar disponível, há sempre a possibilidade de responder a um email de madrugada, há uma corrida à disponibilidade total e imediata, uma isenção de horários não comparticipada. O professor João André Costa relata-nos como experienciou este problema na sua crónica para o jornal Público “Teletrabalho ou a disponibilidade contínua”, dizendo que realmente não tem tempo como tinha quando trabalhava presencialmente: “Nessa altura ainda tinha as sextas e os sábados à noite, hoje nem isso”. José Pedro Pereira - Dramaturgo, Assistente de produção do Teatro Art'Imagem e colaborador do Fundo Teatral Art'Imagem/CC Maia