Coros para depois dos assassinatos

69ª Criação I Estreia: 02 de Setembro de 2002 no TZERO.com.palco - Porto (Espaço Art'Imagem)

Depois dos assassinatos é o título de uma peça. Eu decidi publicar alguns destes coros.

Originalmente, eram discursos das personagens da peça. Chamei-lhes coros na esperança que encontrassem uma atitude de reflexão.

A peça trata sobre um acontecimento no ano 2030. Quando foi escrita, este evento acontecia 50 anos no futuro.

Um soldado deserta e rapta a filha de um operário de uma fábrica de armamento para protestar contra o fabrico e troca de armas.

Entre as outras personagens, encontram-se os pais do soldado e da vítima, outros soldados, funcionários do governo, fanáticos da extrema-direita, protestantes da extrema esquerda.

Eu não guardei a cópia da peça. Se bem me lembro o soldado foi morto e no seu funeral os coros eram falados. - Edward Bond


Excerto do Texto:

(O PAI FALA DO SEU FILHO)

Eu tenho setenta anos / Este é o meu filho morto / Ele ainda não nasceu / O que devo contar-vos ainda não aconteceu / Mas já é verdade


Não tenham piedade de mim / A mãe dele e eu partilhamos a dor / Vocês viram faces brancas nos carros dos cangalheiros a passar na rua / Vós limparíeis as lágrimas dessas faces? / Estranhos podem consolar os parentes do morto como prostitutas consolam os seus clientes mas camiões e fregueses apressados atravessam o cortejo / Vocês podem lamentar mas isso não vai alterar a estória


É o pior dos crimes / Como se quando as pessoas abriram as suas bocas vocês vissem um deserto / E quando eles estalaram os seus dedos vocês ouvissem paredes ruir / O local do crime é o mundo e cada passo e gesto do seu povo faz parte da luta entre o assassino e a vítima / Um erro de impressão num calendário chocaria-vos: como se três fosse impresso antes do dois / Mas o que vou dizer não vos chocará / Por isso é que irá acontecer


Imaginem uma floresta onde uma tempestade soprou mas apenas alguns ramos se moveram / O resto permanece imóvel / A maioria da geração do meu filho não tinha trabalho / Aqueles que não trabalham são como ramos imóveis na tempestade / É contra a natureza / Contudo nós somos criaturas da natureza / Quando o cavalo é retirado do varal ele deveria correr pela colina / Quando os operários estão livres das máquinas eles deveriam tomar tranquilamente o caminho de casa pelas suas ruas / Mas a colina tem dono / A relva da colina tem dono / O cavalo nem sequer é dono da relva alojada no seu estômago / Ele é retirado do varal à entrada do matadouro / E a cidade tem dono / O povo não possui as ruas em que circula / E como as ruas não lhes pertencem as casas situadas nessas ruas não são suas / Nesta cidade ninguém sabe para onde vai dar a rua onde vive / Ou aonde vai quando entra na sua porta / Nos muros as bandeiras estalam como chicotes


Amo e servo - proprietário e propriedade - são os quatro cantos do manto / Os proprietários respeitam a propriedade ? / Quando os ensinaram a fazê-lo ? / Os operários têm poder ? / Quem lhes deu esse poder ? / Então como conseguirão os desempregados conquistar poder ? / Os desempregados são pagos mas as moedas foram depositadas nas bocas dos mortos / Quem ensinará os proprietários a respeitar os desempregados quando eles ainda não respeitam os operários ?


Nesta cidade torres repletas de ficheiros deitam por terra as sombras das nuvens / Nos laboratórios foram abertas dezassete mil portas para além do átomo / Por cientistas que eram ladrões que arrombavam fechaduras para pilhar o futuro / Escrevam na vossa pedra tumular: "Eu Fui Livre" e gerações ririam / Vocês nem são senhores da comida que têm no estômago


E se eu vigio o meu filho morto que ainda não nasceu / Está escrito nas estrelas / E se eu tenho esperança é porque: Estrelas caem


Sobre o Autor:

Edward Bond nasceu em Londres a 18 de Julho de 1934. É um dos escritores ingleses mais conceituados. É também um dos mais polémicos: pela temática explorada nas suas peças foca problemas sociais do quotidiano como os conflitos bélicos e as suas consequências no passado, presente e futuro. Algumas das suas peças mais conhecidas são: "Bingo" (1971), "Olly's prision" (1992), "Saved" (1965), "The war plays" (1985).

Edward Bond participa inegavelmente de um período activo e inovador do moderno teatro inglês. As suas motivações - os efeitos desumanizantes e violentos de uma sociedade tecnocrática, estruturada em classes; a alienação do individuo no sistema capitalista; as contradições destrutivas das nossas instituições sociais e politicas; a aparente impossibilidade de uma acção politica racional e efectiva; a necessidade de uma cultura da classe trabalhadora - todas elas surgem, de várias formas, no teatro dos seus contemporâneos.

Bond chama ao seu teatro um "teatro racional", principalmente para distinguir a sua própria prática literária da dos seus contemporâneos. Para Bond escrever peças é indubiamente uma actividade moral, o seu objectivo, como simplesmente afirma é "dizer a verdade".

Do raciocínio elaborado e complexo de Bond retiram-se algumas palavras-chaves, ainda que depois, talvez, soem a raciocínios descontextualizados do contexto bondiano: humanidade, verdade, imaginação e razão.

Inerentes a elas, levanta-se a questão "porquê fazer teatro ou porquê ir ao teatro?" ou ainda "que teatro nos propõe Bond?"

Daí que o seu teatro levante questões morais (por isso muitas vezes o apelidem de "teatro politico": a escolha do homem irá sempre definir a sua natureza, desenvolver a sua humanidade ou desumanidade. Será esse, segundo Bond, o papel do teatro. Para ele, o único tema que deve interessar à Arte do nosso tempo é o holocausto nuclear.


O tema "A Guerra e a Paz"

Costuma julgar-se que a guerra e a paz se excluem, uma à outra. Mas talvez o que nós chamamos paz sempre tenha sido uma parte da guerra. Não quero dizer que a paz tem sido o tempo em que os homens se treinam e se armam para a guerra. Com certeza que isto é verdade mas quero dizer mais qualquer coisa.

Talvez a guerra e a paz tenham sido frases de uma única forma total de comportamento, uma única forma total de sociedade. Se isto for assim, a guerra teria de ser vista não como a destruição da paz mas como aquilo em que a paz culmina. E assim seria uma ilusão falar de uma guerra para acabar com a guerra uma vez que não haveria paz nenhuma capaz de se proteger a si própria. 

A partir do texto: "Choruses after the Assassinations" de Edward Bond
Tradução:
Luís Mestre
Encenação:
Paulo Castro
Interpretação:
Anabela Nóbrega, Luís Mestre e Pedro Carvalho

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