Um rei, vagueia solitário na sua própria loucura e diverte-se com ela. Num espaço muito próximo, a rainha agoniza no leito de morte, envenenada, assassinada no seu próprio palácio. Um monge prepara-se para as honras fúnebres, observando de perto a clepsidra do expirar de mais uma alma. Nos bastidores deste terror, um bobo, tratador de cães, obriga-se por dever, divertir o rei, nos jogos que este mesmo cria, para conforto do seu sadismo e crueldade.
Tudo se passa nos últimos momentos de vida da rainha.
Da encenação e criação cénica:
“Para ser qualquer coisa bastará um simples adereço.” - REI
Foi este o ponto de partida para toda a concepção cénica do espectáculo.
Dos desperdícios quotidianos, faremos o nosso palácio, vestiremos as suas roupas, utilizaremos armas de tortura!
A maior aposta, com todos os riscos assumidos: o trabalho de actor.
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UMA RAÇA MALSÃ(?)
O homem é um ser político; logo todas as suas actividades também o são. O teatro não se pode alhear deste compromisso. O teatro transforma a sociedade, na medida em que o confronta com as suas próprias vicissitudes.
No Escurial, Ghelderode, expõe o homem no seu limite mais básico. Um Rei refém da sua loucura, e um bobo escravizado à sua condição de plebeu. A decrepitude de um poder autocrata, para quem o povo merece a sua condição de oprimido, porque a vontade do poder assim o determina.
Haverá espaço para o optimismo, num mundo governado pela vontade em detrimento da razão? A retórica é concreta, quando abrimos o jornal.
Mas, Ghelderode vai mais além e inverte os papéis. Se por um capricho da vontade (do Rei), o bufão ascende à cadeira do poder , confundir-se-á ele com a figura do opressor? - Flávio Hamilton
Preferíamos não ter escolhido este texto!
Preferíamos ter optado por um texto gracioso, poético, hilariante, anedótico, burlesco...
Mas conscientes de um tempo cruel, vivendo na pele as agruras de um sistema maléfico concebido por entidades geniais, e herdeiros por simpatia desta avalanche caótica, nós, contadores de histórias, não podemos ficar à margem, esclarecidos que estamos, à partida, e é nosso dever pegar na trombeta e soprá-la com vigor, num alerta de consciências porque o tempo urge!
Ghelderode, nest’ “O Escurial”, penetra na mais hedionda alma de um rei, senhor absoluto de uma maldade requintada, egocêntrica, doentia, em que a sarna se torna aprazível na sua coceira e só pára quando o seu próprio sangue borbota.
Infelizmente, reis como este, abundam por aí, com outros nomes, presidentes, administradores, gestores, chefes de clãs, chefes de família; nos seus nichos próprios, instalam climas de terror e assassínios sem qualquer temor, nem respeito pelos direitos humanos.
Como é possível, ainda (?!?!), após tantos alertas, tantos exemplos nefastos na nossa história, permitirmos actos grotescos, desumanos, bestiais?
Estará a raça humana destinada à auto destruição?
Porque é impressionante a apatia dos rebanhos ao permitirem que certos lobos invadam os seus repastos e se tornem eles próprios, os rebanhos, menus dos que acolhem à sua mesa!
Mergulhemos a fundo na alma deste rei, trazido por Ghelderode numa inspiração a partir de Filipe II de Espanha, Filipe I de Portugal, e nele revisitaremos Nero, Calígula, Hitler, Mussolini, Franco, Salazar, George W. Bush, R. Mogabe, e por aí fora...
Infelizmente! - Valdemar Santos