«Os Sonhos são a Literatura do Sonho»* : sobre a conceção e encenação
Foi na nossa solidão pandémica de 2020 que reli Ópio — Diário de uma Desintoxicação (1930). O livro fora-me oferecido, em 1985, pela minha amiga Paula Martins Prudêncio, e quis a ironia do destino que a sua releitura, tantos anos depois, ressoasse com a estranheza do tempo que então vivíamos: nós confinados, Cocteau enclausurado. E senti que partilhava com ele essa sensação de “dificuldade de ser”; uma “queda horizontal” que não nos derruba, mas nos desalinha. Dessa coincidência inesperada nasceu o desejo de transformar Ópio numa criação cénica.
Pareceu-me uma oportunidade de apresentar Cocteau ao público português por uma via menos habitual, desviando-me da recorrente opção de encenar A Voz Humana (1930) — talvez a sua obra mais célebre e, certamente, a mais representada em Portugal.
No ano seguinte, convidei o Samuel Pascoal (com quem já tinha colaborado em Noites Brancas, em 2019) para este mergulho cocteauiano, lançando-lhe o desafio de criar uma dramaturgia que, partindo de Ópio, percorresse as veias multisanguíneas de Jean Cocteau. A sua imersão incansável nas palavras, desenhos, filmes e delírios do autor originou o texto Opiário Cocteau: Uma Queda Horizontal. Aquilo que, inicialmente, fora pensado como um monólogo tornou-se num “monólogo dialogado”, e, para nossa surpresa, criou pontes com o universo cénico de Noites Brancas. O “sonhador” dostoievskiano prolonga-se, aqui, no “sonhador” cocteauniano: o primeiro atravessa quatro noites, o segundo assiste ao
desfolhar de quatro pétalas. Em ambos encontramos a mesma oscilação entre o real e o imaginado, bem como a presença de uma figura feminina misteriosa — a Mulher-Papoila, tão próxima de Nastenka — que nos deixa sempre na dúvida: existiu realmente, ou foi apenas o sopro de um sonho?
Da equipa de Noites Brancas regressaram também o Flávio Hamilton (interpretação), o Carlos Adolfo (composição musical) e a Marta Silva (cenografia e figurinos). A estes juntaram-se a Daniela Pêgo (interpretação) e o André Rabaça (desenho de luz e vídeo), cujos contributos foram essenciais para a respiração onírica desta nova criação. Reunidos os «modelos de flor» de cada um, partimos em direção a essa queda vertiginosa, abraçando a linguagem surrealista que tão bem define Cocteau. As últimas três batidas da claquete (de Molière) abrem o jogo metateatral: a clínica instala-se dentro do ateliê do artista, e mergulhamos no
interior da sua mente febril. Há ainda espaço para nos intoxicar-nos com a nicotina do onírico — relembrando o momento quimérico do «Barbeiro de Sevilha» de Noites Brancas. Em Opiário Cocteau, o sonho é a língua-mãe do protagonista, e por ele desfilam espectros familiares que moldaram a sua vida: Marcel Proust, Pablo Picasso, Erik Satie, Jean Marais e Édith Piaf.
Toda essa multidão de delírios atravessa o corpo de apenas dois atores — a Daniela e o Flávio — com quem trabalho há anos e com quem partilho uma cumplicidade rara. Todos nós já desempenhámos, uns para os outros, tanto o papel de ator como o de encenador: somos uma espécie de tridente de criadores residentes. O Flávio dirigiu-me em Armazenados (2018) e dirigiu a Daniela em Hilda Hilst – Afundando os Dedos na Matéria do Mundo (2023); a Daniela dirigiu-me a mim e ao Flávio em Sussurros de Sombra (2025); e agora dirijo-os eu. Essa familiaridade simplifica a direção de atores, abre espaço para uma entrega total com cumplicidade e confiança.
Agradeço a toda a equipa do Teatro Art’Imagem pelo empenho e dedicação nesta nova criação. E agradeço, também, ao meu amigo arquiteto Luís Albuquerque — um apaixonado por Jean Cocteau — que me apresentou o tema musical Speak Low, de Kurt Weill, na versão cantada por Ava Gardner em One Touch of Venus (1948). Cocteau descreveu Gardner como “o animal mais bonito do mundo”, e a escolha desta música, que abre e fecha o espetáculo, tornou-se uma espécie de eco simbólico dessa frase — e, simultaneamente, do fascínio que o próprio ópio exercia sobre ele. Agradeço, ainda, ao meu amigo cineasta André Gil Mata pelas longas tertúlias cocteauianas que ajudaram a adubar este processo desde os seus primeiros passos.
Entretanto, no horizonte, já se desenha a próxima ensonhação: A Metamorfose, de
Franz Kafka — terceira parte desta minha “Trilogia do Sonho”. Espero lá chegar e, se chegar, que seja devagar, saboreando o presente e dando ouvidos a Blaise Pascal: «Antecipamos o futuro que nos tarda (...) ou evocamos o passado que nos foge (...): tão imprudentes, que andamos errando nos tempos que não são nossos». Por agora, disfrutemos desta apneia cocteauniana!
Pedro Paula de Carvalho
Actor e Ensonhador
* Citação atribuída a Jean Cocteau.













