É o dia da morte de Amílcar Cabral. Ele barbeia-se e muda de roupa. Encontra-se de pé perante o seu fim como as árvores que o rodeiam.
Sabe que será baleado nessa mesma noite e perante a cadência insistente e marcada do relógio faz a retrospectiva da sua vida. Nela, cabe o questionar a noção de nacionalidade e de Africanismo. A dualidade da resistência pacífica versus a armada. A perda de inocência. O seus grandes amores, Mãe, Ana e a Liberdade. A vida de Cabral não é uma vida qualquer e a peça Cabral, A Última Lua de Homem Grande, baseada no livro de Mário Lúcio Sousa com o mesmo nome é mais um passo no sentido de resgatar a sua memória, porque, como se pergunta a si próprio Amílcar, quantas vezes pode um homem morrer?
Cabral viveu muitas vidas e também morreu muitas vezes. Ou pelo menos quiseram matá-lo frequentemente e da forma mais cruel. Através do esquecimento. Figura central não só no combate ao colonialismo português mas também para o que viria a ser o 25 de Abril, Cabral destaca-se na identidade moderna de Portugal e de África. Mesmo que a história verdadeira não seja feita de personagens principais e sim do colectivo, a sombra deste homem eleva-se só e é assim que se apresenta também no palco do Cineteatro Louletano, integrado no Festival Tanto Mar 2025, na interpretação de João Paulo Brito. João, que durante 70 minutos exibe na forma de, não exactamente um monólogo mas um diálogo interior que por vezes exterioriza, um trabalho só mas não solitário. Além de todas as personagens e objectos que evoca, o actor instila outra vida na peça quando quebra inesperadamente a sua diatribe para se dirigir directamente ao público.
Por duas vezes as luzes da sala se acenderam, uma delas para perguntar à audiência quem conhecia Cabral e o que sabiam dele, situações em que a quebra de personagem serviu para a fortalecer. As respostas começaram por ser tímidas até que alguém falou em liberdade. Os aplausos surgiram fortes, e o que restava da tensão de antecipar a chegada da morte, dissipou-se por momentos. Eis que surge finalmente a hora da morte de Cabral, baleado por defender todos e não apenas alguns, como diz em determinado momento. Em palco, resta a escuridão e o sumbia, barrete tradicional, oferecido por camponeses de Oio (Guiné-Bissau) ao revolucionário que se tornaria tão parte de si como a boina de Che. Fica também certamente, a memória de um combatente pela liberdade num momento da história em que figuras como Cabral se tornam cada vez mais determinantes para que não esqueçamos o que foi a ditadura, sob pena de a repetir. E também para inspirar novas formas de a afrontar, mesmo contra todas as probabilidades.