"Colar de missangas no pescoço, o tempo todo"
Os clássicos são para se comer e regurgitar depois. A obra do José Craveirinha, estanto inserida nessa categoria, precisa ser mastigada com responsabilidade e à margem de qualquer pudor, que a mais não serve senão para relegar tudo o que se diz canónico à condição de intocável.
É imperativo dessacralizar o sagrado e libertá-lo do entorpecimento do pó, tomar de assalto a colónia de ácaros que por tendência se apodera dos seus escaparates.
O sagrado, se for divino, é, por consequência, humano. Se for humano, então a todos pertence por igual, independentemente da geografia procedente. Craveirinha é, portanto, para se comer e não para se imortalizar na rigidez da pedra monumental, sujeito à erosão elementar. Um poeta não tem epitáfio. O epitáfio é o próprio poema, a carne mítica da obra.
O texto Sussurros de Sombra não se insere na lógica de um teatro documental, nem sequer biográfico, na aceção mais imediata da forma. É uma peregrinação livre e enxuta pelo verbo do poeta que, a partir do seu contexto, esculpiu a metáfora-mundo.
Dramaturgicamente, a procura foi no sentido de habitar esse claro-escuro da obra, de modo a que se projetasse em palco a sombra idílica do poeta, a sua emanação vocal, aquilo que ressoa através do corpo dos intérpretes.
Maria, sua graça de vida, foi o fio que entreteceu o colar de missangas, que conta os ecos da prisão e a luta incessante pela autodeterminação do seu povo.
Moçambique, a luta continua!
Fávio Hamilton, Dramaturgista
Karingana Ua Karingana (Era Uma Vez) Um canto a África, Nossa Terra Mãe
O Teatro Art´Imagem em 1998 levou a cena, pela primeira vez, uma peça dedicada a África e sua história, denominada " Água Negra - Ministros da Noite", com textos recolhidos por Ana Barradas da historiografia portuguesa a partir do século XV, problematizando a colonização e as suas nefastas consequências entre os povos locais e o desenvolvimento do continente e, desde então continuamos, talvez porque connosco trabalham regularmente alguns artistas africanos e companhias, que permitiu conhecimentos, intercâmbios, co-produções, a apresentação das nossas peças e acolhimentos, principalmente com Cabo Verde, mas também com Moçambique, Angola e mais recentemente com a Guiné-Bissau.
Assim em 2000 recordo "Minha Conto" do moçambicano Mia Couto, encenada pelo seu compatriota Alberto Magassela. Em 2002 o "Autocarro do Amor em Cabo Verde", um espectáculo circulante falado em crioulo e português , no Mindlact. Em 2008 "Ptlolomeu e a Sua Viagem de Circunavegação", do caborverdiano Tchalé Figueira. Em 2011 a "Acácia Vermelha" do português Manuel Pope e de "Um Punhado de Terra", do português Pedro Eiras. Voltamos a Mia Couto em 2015 com "BemMarMeQuer - O Coração é uma Praia".
Em 2017, 2019 e 2022 afloramos a Guerra Colonial nas peças da minha Trilogia "A Identificção de um (o meu) País".
O ano passado (2024) numa co-produção com o Sikinada de Cabo Verde fizemos "Cabral - A Última Lua de Homem Grande", do cabo-verdiano Mário Lúcio Sousa, tendo-se realizado espectáculos em Cabo Verde, na Guiné-Bissau e Portugal.
Agora em 2025 chegou a vez de estrearmos "Sussurros de Sombra" do poeta moçambicano José Craveirinha, obrigado à Daniela Pêgo pela sua escolha e a todos os que fizeram este espectáculo, esperando que os espectadores usufruam em plenitude da sua poesia, do verbo e da verve, vida e luta pela liberdade e independência da sua terra, Moçambique.
José Leitão, Director Artístico do Teatro Art'Imagem
José Craveirinha
Nasceu a 28 de Maio de 1922, na então Lourenço Marques, atual Maputo, e faleceu a 06 de Fevereiro de 2003 na África do Sul. Filho de duas raízes conflituantes à época. Algarvio por parte do pai e moçambicano por parte da mãe. Não renunciando à cor com que nasceu, afirmação do próprio, reivindicou sempre a sua africanidade, não só através da sua obra, como pela vivência marcadamente moçambicana, pátria que fez questão de sublimar acima de tudo. Autodidata confesso, foi, além de poeta, jornalista e ensaísta. Nos jornais, fez campanha contra o racismo e tratou de assuntos referentes às camadas mais desfavorecidas, tendo sido o primeiro jornalista oficialmente sindicalizado de Moçambique. Esteve preso entre 1964 e 1968 devido a sua ligação com a FRELIMO. Em 1991 foi-lhe atribuído o Prémio Camões, tornando-se o primeiro poeta africano de língua portuguesa a ser distinguido com o galardão. Foi vice-presidente do Fundo Bibliográfico da Língua Portuguesa e Doutor Honoris Causa pela Universidade Eduardo Mondlane. É um dos heróis nacionais de Moçambique e os seus restos mortais encontram-se depositados na cripta correspondente à referida categoria.